quinta-feira, 17 de junho de 2010

Invisible Monsters

Por Ami Porto
Ilustração de PC Siqueira


Quando a beleza dela ou dela é superior as outras presenças, podemos nos considerar de certa forma invisível?
Quando tudo que dizem, é ignorado pelo simples fato de terem peitos, bundas e bocas enormes, elas deveriam agradecer?
Deveriam lamentar?

E você ai, queria a garota da propaganda do creme dental?
Sim, você queria a garota da propaganda do creme dental!
Para contar a todos, para honrar seus colhões, para sentir-se dono das bocas e pernas e bundas e peitos e braços, abraços, saliva e sexo.
Sim, nós queremos a todo instante apreciar a beleza que passa diante dos nossos olhos, e porque não provar da beleza que passa diante dos nossos olhos.

Mas Shannon McFarland desistiu desta vida, numa inversão da beleza a um caminho obscuro, guiada por Brandy Alexander, uma transexual viciada em Valium e outros benzodiazepínicos, elas imbarcam numa viagem interminavel em busca de vingança, descobrimento e redenção.
Com uma violenta critica a realidade materialista e consumista do mundo de hoje, criado pelo furioso Chuck Palahniuk, de Clube da Luta, fica exposto nesta obra as inúmeras formas de monstros, tanto físico quanto psíquico, tanto visível quanto invisível, que podemos nos deparar ao longo da estrada.

Monstros Invisíveis, de Chuck Palahniuk, 256 páginas, Editora ROCCO.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Revirem suas gavetas em busca dos papeis amarelados

Comecei a pensar em muitas vidas quando organizava os papeis empoeirados do quarto que anos me abrigara. Tossia feito louco a cada página velha que virava. Maldita alergia. Maldita nostalgia. Bondosa nostalgia, que me fez ver fotos de quem não vejo mais, de quem não quer mais me ver e de quem não quero mais ver. Todos estavam mortos. Pai, mãe, irmão, tio e avô. Eu era o estranho no meu ninho. E mais tosse, talvez por ter parado de fumar. Mas agora eu queria um cigarro, porém me compus. As paredes azuis estavam desbotadas, infiltradas e com teias de aranha. Minha aracnofobia havia desaparecido, mas agora sentia seu resgate eminente, com alguns sentimentos pendentes que humanamente me consumiam. Não havia mais meu cheiro. Mudou. Eu seguia as pistas da antiga casa. Fui até o quintal. Nada de hortelã na horta. O flamboiã estava morto. O parquinho das crianças com limo. Na cozinha o piso de madeira estalava ainda no mesmo lugar. Lembrei das inúmeras vezes que prometi entrar no porão para consertar. Logo o corretor estaria comigo, e o telefone tocou. "Mais uma hora, seu Newton", seu Newton era o tal corretor e eu precisava dele mais do que qualquer pessoa no mundo agora. Não precisava de Jesus, nem de uma terapeuta. Eu precisava de seu Newton, pra me desvincular eternamente daquela casa que tanta vida me proporcionou. No carpete do quarto algumas manchas que lembrei ser de vinho. Os móveis feitos sob medida, por mim e por Joca. Eu tinha saudades de Joca, e de outros que se perderam pelo mundo a fora. Há, Deus do céu, a gaveta falsa! Que horas escondia cigarro, horas guardava camisinha, baseado, dinheiro, horas guardava poemas e musicas para ela ou pra ela. Coloquei a mão lá no fundo, tentando não pensar nas aranhas. Tinha um papel. Puxei. Assoprei. Tossi. Agora os papeis que presumi serem importantes estavam guardados na pasta de couro que carregava e deixava para abrir ao fim desta história. Seu Newton iria querer tomar um trago para comemorar a venda da casa. Fora arrematada por uns 150 mil. Eu queria tomar um café, sozinho, lendo aqueles papeis velhos que eram minhas relíquias. Droga, aquele monte de papel amarelado valia mais que esses 150 mil! Fui ao banheiro do quarto. Diante do espelho quase não conseguia me ver. Estava velho. Eu e o espelho. Desbotado pela vida, rugas e cabelo branco, manchado e trincado, evoluído, porém cansado, mal lavado, porém reflexível. Seu Newton abriu o portão eletrônico já conversando com os compradores. Eles falavam sobre futebol, porque a essa altura o negocio já estava fechado. Na semana seguinte aquelas paredes viriam ao chão com toda a sua idade. Foda-se, pensei, eu não posso conservar essas paredes. Só posso conservar minhas histórias, meus amores, meus sabores de guerra de bexigas e banho de mangueira. Meus gre-nais sofridos, meus goles de cerveja gelada, meu suor e saliva de sexo. E dos perfumes de nicotina. Dos quecas embriagados, consumidos pela adolescência infinita, que agora eu não tinha. Onde foram todos os gostos e cheiros e amores da época mais preciosa de minha vida? Estão conservados em algum lugar, dentro de mim. Ninguém tira este patrimônio espiritual de mim. "Tu deve ter vivido bons momentos nessa casa, não é Seu Ami?" dizia o engravatado comprador da casa. "Nada de mais, eu mal parava em casa..." Foda-se o engravatado! Não tinha que transparecer meus sentimentos, ele não queria realmente saber, eu não queria realmente falar.
Dei uma velha desculpa pro trago comemorativo, enquanto o dinheiro ia para minha conta e fui ao café mais alto da cidade. Era uma bela vista. Abri minha pasta e comecei a folhar os papeis. "Você tem Marlboro ai?" "Temos sim senhor, maço ou box?" "Não, me traga apenas um café."
A vida passou. É isso... A vida passou como as madrugadas que eu passava escrevendo. Como as madrugadas em que me deliciava nos tecs da máquina de escrever e depois no computador e às vezes nos garranchos dos bloquinhos. E logo o sol dava oi. E a vida assim, passou. Caralho, como eu tava velho. Me sentia velho, mas minhas costas carregavam somente 53 anos. E minha mente? Todos nos culpamos pelo que fizemos ou deixamos de fazer, não é mesmo? Tá bom, eu sou teu marido, tu é minha esposa, aquele ali no canto esperando para ler tudo isso, é meu neto. E meu filho? Ele esta dando a volta na quadra esperando minha nora sair do salão de cabeleireiro. Ele vai comentar sobre seu lindo corte de cabelo, afinal, ela saiu do salão. Ela ficara puta, porque apenas fez as unhas. Tá bom, essa historia seria amável num simbolismo familiar, mas eu era um homem sozinho. Escolhi essa vida. ESCOLHI ESSA VIDA. Depois de três casamentos e unhas mal feitas, escolhi essa vida. Mas o mais importante agora eram os papeis. E Mr. Tambourine Man soava perfeito na jukebox do café. Veio a pré-escola, com cola colorida e glíter, a folha amarela e uma nota nove, dado pela minha primeira professora. A quinta serie, com excursões para puta que o pariu, que era o melhor lugar do mundo. Sétima e oitava, com bilhetes assim:

"Mãe, gostaríamos de informar que seu filho, Ami, receberá a ultima advertência antes de ser convidado a deixar de fazer parte de nossa escola, pelo fato de difamar o professor Dorival Neves, de física. Tais ofensas são indispensáveis de redigir neste bilhete. Espero sua resposta mesmo sabendo que tens trabalho em tempo integral, como já afirmaste por telefone. Diretora Italiana de Plates, E. E. E. F. José Lebre"

Cartas, mais bilhetes, notas, desenhos, mangás recortados, pôsteres recortados. Poemas e fotos. E fotos recortadas. "Mais café, por favor." Tudo sobre pó, sobre o valor do pó. Com os dedos pretos, logo corri para o mais amarelado de todos; aquele do fundo da gaveta falsa. Era um poema que havia escrito no dia anterior de minha partida para outra vida. Eu não lembrava que havia escrito aquilo, e tinha um significado enorme para mim. Para minha geração banal que não abrangia tudo isso que me consumia por demais.

"Textos de Hemingway,
Pinturas de Frida Kahlo,
Quadrinhos de Crumb, com textos de Harver Peaker,
Cobranças de faltas de Roberto Carlos,
E o velho Dylan rolando as pedras!
Takes de Kubrick, Almodóvar e Scorsese,
Dribles do Mané pelo fogão,
Polar, pra nos orgulhar do que é nosso,
Dando sentido a papo cabeça para os alienados
e papo idiota para os undergrounds,
Nessa salada mista, que é tão minha,
e poderia ser tão sua."

Eram somente palavras que me deram o cheiro da casa, a cor do flamboiã, o som das crianças no parquinho, o azul turquesa recém pintado. A cara de Joca, cansado depois de fazer os moveis, o sorriso alegre da garota mais bela da cidade, nos primórdios da paixão. Sai do café. Sem final triste. Sem final feliz. Sem ponto final. Apenas correndo as próximas vinte quatro horas esperando os papeis amarelar e serem lembrados da felicidade maior que queremos ter, e já tivemos

(sem ponto final)

Ami Porto