quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Vitória Vs. Quem não quer ser


Agora estava a um passo da maior descoberta de todos os tempos, pelo menos pra mim, mas ainda nem sabia disso. Bom, talvez se soubesse estaria mais excitado. Subia as escadas de mármore da cabana luxuosa que a tempos observara de fora. Era lindo e assustador. Os vidros escuros e os moveis também. As paredes em vermelho vivo e um piano longo, que supus jamais ser tocado. Era uma família pequena, a mãe fora médica, o pai antropólogo. O pouco que sabia-se deles até então, era que não podiam ter filhos e moravam sozinhos, com a companhia da mesma empregada desde que construíram a casa, uma moça timida que quase nunca saia, segundo a vizinha que terminava de ser interrogada. Homens tiravam fotos e conversavam sem dar muito valor a cena rotineira. O chefe com seu olhar frio e o cigarro pela metade no canto da boca, disse para mim subir até o quarto do terceiro andar.


***

Havia sido o frio mais intenso, o de 96, ao menos pra mim, que trabalhava num escritório, caminhando cerca de trinta minutos para chegar lá. Nas ruas mais movimentadas, passavam carros e motos, pessoas e cães vira-latas todos conexos no frio inaceitável daquela época. Era impossível não ligar. O calor humano morria ali. Olhos com remela, abaixo da touca de lã, acima da manta cobrindo a ponta vermelha de um nariz que fungava segurando os ranhos, as vezes era tudo que podíamos ver no rosto dos obrigados a caminhar. A paisagem me reconfortava, imaginando uma Europa distante e gloriosa que não havia sido apresentado. A geada típica, acompanhada das folhas mortas, dos quintais varridos pela solidão dos homens sem mate e dos cães sem latido. Cães que tentavam enxergar algum movimento diferente dentro e fora de casa, pelo buraco de suas gélidas casinhas de madeira bem abaixo das chaminés que aqueciam lares, junto da água fervente, que aquecia o corpo quente que me via lá fora passar. Era somente eu na rua, nesta rua. Por vezes passava uma mulher com um cigarro na boca. Uma garota incrivelmente linda, ainda que entrouxada de roupa, com os cabelos cacheados por falta do banho que existia nas manhãs de verão.
Eis que surge a cabana. Uma pirâmide imponente que não temia ao frio, como as casas ao redor. As outras, encolhiam-se. Esta erguia-se como uma fogueira de quase dez metros. Vermelho nas paredes. Vidros negros, grades negras. Mármore imitando tabuleiro de xadrez, desde o portão até a porta de entrada, os vidros devidamente abertos, na perfeita simetria de toda aquela grande obra. Um vidro se fechou. Exatamente quando eu passei. E assim permaneceu pelo resto dos dias que cruzei por ali. Cada manhã e cada noite. Sempre fechado. Sempre claro, significando uma luz sempre acesa, significando alguém sempre ali, significando uma solidão, uma exclusão, um esquecimento, talvez um pretexto para indicar a presença de vida. Ou era apenas uma luz?

Vamos para o dia em que pego o livro de funcionários do escritório em que trabalhava e vejo uma garota negra, de olhar sereno, linda, mesmo sendo numa foto 3x4. Seu nome é Vitória de Soño, sua idade, a mesma que a minha. Sem endereço, telefone ou qualquer outro complemento. Uma semana na empresa. Tudo tão vago quanto o olhar na foto apagada que pensei em roubar. (Roubei.) Uma foto que passei meses olhando, pensando. Queria encontrá-la. Não para tentar me casar, mas para descobrir o grande mistério que eu criara, já que o pessoal dali falava pouco, sem interesse algum, sem o sentimento de que pairava algo confuso no olhar da bela moça. “Eu não sei, não sei! Já falei que ela não falava com ninguém, parecia que tinha medo até de atender o telefone, quando pedimos para ela trazer a documentação, ela nunca mais apareceu.” Vitória ficara no fundo do bolso da carteira. Até agora.


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Burkina Faso foi o pais escolhido pelo Dr. e Dra. de Soño para passar sua lua de mel. Desenvolver um serviço social num dos países mais pobres do planeta encantava tanto o antropólogo, quanto a médica. Manter um diário de bordo que possivelmente virasse um livro, tendendo ser comentado por alguém do conselho nacional ou da mídia, ousando tornar-se um pretensioso documentário, quiçá um longa com algum romance politizado, era o mais oculto dos sonhos idealizado pelo casal. Claro que seria merecida a recompensa de todo o esforço em prevenção ao HIV, o esforço para combater a mortalidade infantil e o auxilio básico a população, pensava a doutora que era mais ambiciosa que seu marido. Fixaram-se então na capital Uagadugu e exploraram os bairros pobres dando todo o suporte necessário. Seus trabalhos tinham grande notoriedade e passando alguns meses, surgiu Zola Marvena Meeca, mais uma jovem, que implorava comida para suas seis filhas. Os doutores olharam para suas pequenas crianças. Em meio a toda miséria, elas davam risada para matar a fome, brincavam com a terra que logo seria seu alimento. Em meio a toda aquela desgraça, tinham fé num Deus que havia ido comprar cigarros e jamais voltara. Um olhar mágico saia dos olhos da mais velha de todas. A doutora perguntou com seu excelente francês, abrindo um sorriso receptivo, o nome daquela que destacava uma beleza quase extinta naquele lugar. Chamava-se Lubaya, tinha nove anos e sorria tímida.
Zola tornou-se a mais dedicada auxiliar que qualquer médico poderia ter. Implorou um perdão desnecessário, quando contou sobre seu sétimo filho. Um menino, dessa vez. Os doutores mantinham-se agora no povoado mais pobre da cidade, junto com Zola e as crianças. Sempre havia alguém para consultar e alguém para necropsiar. A morte era a televisão das crianças de Burkina Faso. O horário eleitoral gratuito, o futebol das mulheres e a novela dos homens. Zola cresceu em meio a tudo aquilo. Caminhava pelas beiradas. Equilibrava-se nas pernas secas, nos recordistas 23 anos de vida. A doutora seguia sorrindo diferente para a encantadora Lubaya, que respondia ao carinho, até a noite em que estourou a bolsa de Zola. Era complicado explicar, mas o parto tornou-se de risco, mesmo com todos os cuidados, tinham que escolher entre ela e o bebê. Ela. O bebê. Nenhum dos dois se salvou. Nenhum dos quatro no quarto. Nem Zola. Nem a criança, nem os doutores. Tudo acabara ali. As proporções foram além do imaginável. O sangue de Zola manchava a carreira fantástica daquele casal. Manchava o espírito. Manchava a adormecida Uagadugu, na amarga e finita noite do casal de Soño, naquele distante pais africano.


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Quando abri a porta do quarto, dei um sorriso de alivio. Finalmente eu matava uma curiosidade infantil. Ele estava impecável, mas não era tão belo quanto imaginava nas frias manhãs que passava, a onze anos atrás. Ao dar alguns passos avistei uma folha, propositadamente colocada no chão, ao centro do quarto, de forma que a primeira palavra, mesmo não sendo a primeira escrita no papel, que meus olhos conseguiram ler, foi: Vitória. Minhas mãos se atiraram até a folha, enquanto alguém perguntava-me se havia algum corpo no quarto. Respondi que não e voltei toda a atenção para o meu santo graal. Letras lindas, escritas em trechos, numa colagem xerocada, com partes sublinhadas por um marca texto verde florescente. Comecei a ler:

“Conheci a garota mais linda que os meus olhos poderiam ver, nesta doença infernal chamado África. Ela tem nove anos e é filha mais velha de uma mulher que vem sendo muito útil nas nossas pesquisas sobre partos naturais em situações extremas... Robert se encantou com a pequena Lubaya tanto quanto eu, e se tudo der certo pediremos apoio ao nosso governo para sua adoção... Lubaya é tão doce, que tive medo de sua reação sobre o parto. Zola já estava contaminada com o vírus, por isso apenas lhe poupamos tanta dor, e o governo nos concedeu sua guarda de maneira tão simples que não há mais necessidade de ficarmos aqui... As crianças acharão seus caminhos, levaremos elas pra Gana, onde o auxilio a órfãos tende a ser melhor... A menina esta quieta demais, mas sei que faz parte de sua adaptação em sua nova vida... Na nova casa projetamos o melhor quarto para ela... Queria tanto ser chamada de mãe... Queria tanto publicar sobre nós, sobre Burkina, Zola, sobre tudo, mas Robert e eu sabemos o quanto isso iria nos prejudicar... Repudio-me toda manha quando penso que tenho que mentir aos vizinhos que minha filha é apenas a diarista... Se pudesse voltar no tempo queria estar com minha filha naquela cidade terrível de onde ela veio, quem sabe assim eu veria o sorriso mais lindo do mundo... Temo que ela queira voltar, temo que ela esteja suprindo uma raiva enorme por mim e Robert... Pagamos a faculdade mais cara de medicina para ela, e não consigo ver felicidade vindo em minha direção... Queria tanto que ela conhecesse alguém, que finalmente tivesse uma alegria sincera... Quero netos, antes que esses remédios me matem... Robert esta me deixando louca... Hoje acordei e ela finalmente me abraçou e disse “obrigado, mãe” com um português legitimo, no começo parecia uma despedida, mas agora sei que ela me ama...”

Quando virei a folha, estava escrito em francês, com caneta azul, a frase que terminava toda esta história. Assim como a foto roubada, anos atrás, peguei o papel e coloquei-o no bolso, a maior e provavelmente única prova do envenenamento do casal de Soño. Jamais a conheceria, mas tive a certeza que limpara todas as poucas evidências de sua longa estada na vida do casal. Obrigado, linda Lubaya, por permitir que eu soubesse ao fim, sua existência. Mesmo você jamais sabendo da minha, obrigado.
“Achou alguma coisa?” “Nada...” “A empregada sumiu, faz mais de meses, segundo os vizinhos. Acharam o corpo daquele ladrãozinho de merda a três quadras daqui. Bom, se não for ele, agora vai ser. Ei! Tá me ouvindo porra! Bora lá da uma olhada no bandidinho...”
Palavras podem salvar você?
Podem me salvar?
Pelo menos senti o prazer de ser o único a conhecer a verdadeira história.

“Après beaucoup de temps je ressens le Vitória être Lubaya”
(Depois de tempos eu sinto a Vitória de ser Lubaya)


***

Numa tarde quente e típica, no Aeroporto Accra Kotoka, em Gana, Lubaya respira seu verdadeiro ar, começando uma nova busca, numa nova vida, encarando o fato que acabara de vez vencendo, por não querer ser a falsa Vitória.

Ami Porto