segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Nota de compreensão

Por muito tempo quis compreender o que passava na cabeça de Lisa. Sua revolta com o mundo culminava em tapas e repúdios desnecessários para um namoro tão belo, como o nosso. Sua filosofia Live Fast, Die Young até me seduzia, mas não me tomava por completo. Sendo assim, me via obrigado a desbravar o glossário bipolar Lisano, e sempre que chegava as páginas finais, terminávamos. Aí, eu bebia, batia, fumava, trepava e Lisa ainda estava lá, nas minhas cabeças adolescentes de vinte e quatro anos. Daqui a pouco ela golpeava a porta de minha casa com força, proferindo o oi mais filho da puta que já ouvi, beijando-me ligeira, nua, do seu modo, de acordo com seu cronograma. Depois fumava aliviada com tesão jovem ainda recendendo, mesclando-se ao cheiro mentolado do cigarro. Escrevia em meus braços, frases de canções, normalmente dos Beatles, normalmente de George. E então recomeçávamos até o suor acabar com as frases, para serem escritas outra vez.)


Era quase natal e começava a sentir a melancolia do fim de ano chegando. Eu tentava fugir disso. Tentava me esquivar, disfarçar, mas quando menos percebia, acendia um cigarro e o olhar profundo dominava tudo. Lavei o rosto e sai. A caminhada rotineira da nova vida me fazia respirar melhor. O Parcão era minha terapia, qualquer sensação ruim era expelida ali, em meio a seus maravilhosos habitantes, tanto os hippies engravatados, quanto os filósofos Tetra Pak. Andava em direção ao centro do parque onde havia um lago com pedalinhos e tartarugas, bancos feitos com troncos e um trapiche comprido, perfeito para pescar, com uma placa de proibido pescar. Normalmente eu dava umas três voltas no lago deixando o stress dispersar. Foi ai que lhe encontrei, no começo da primeira curva. Meu olhar parou no cabelo loiro que já havia sido puxado pela mão, que agora largara o cigarro no chão. Estava longe de ser a melhor sensação do mundo, mas instintivamente caminhei em sua direção. Linda. Com jaqueta de couro. Batom vermelho. O cheiro ao meu alcance, apesar da longa distância. É incrível com existem pessoas que inexplicavelmente nos hipnotizam ao respirar. Lisa estava com uma garota tão linda quanto ela e logo imaginei seis pernas entrelaçadas. A garota era ruiva e sorria gentil a cada palavra que Lisa dizia. Nenhuma conseguia me ver e meu coração explodia de alegria, tesão e nostalgia.


Por muito tempo quis compreender o que passava na cabeça de Lisa e nessa noite eu só queria saber o que passava na minha, buscando companhia num site de acompanhantes. Não que eu considerasse isso algo depressivo ou vergonhoso, pelo contrário, seria bom inventar uma história e ouvir outra minuciosamente arquitetada, arrecadando falsos pontos para o próprio ego, mas a verdade era que eu buscava uma forma imediata de esquecer a tarde no Parcão. Esquecer das línguas passeando entre batons e dentes, saboreando a saliva que eu queria saborear. Eram esplêndidas, as duas! Particularmente o sorriso de Lisa enquanto beijava. Aquele sorriso do canto da boca que eu via ao abrir os olhos no meio do beijo, acompanhado da mão leve no cabelo, costas e bunda. Lisa me viu e apresentou Mika. Era tão estranho e lindo tudo aquilo. Agora notava a barriga levemente inchada pelos três meses da gestação. Deus, como eu queria fazer parte daquela alegria. Lisa me contou brevemente sua vida desde nosso último encontro, sobre seu relacionamento com Mika e a inseminação, sobre as fotos novas que estava tirando. Dizia isso com Mika ao seu lado, ainda sorrindo. Aquilo me incomodava, ela sorria porque não tinha ciúme e não tinha ciúme porque eu não era mais importante pra Lisa, apenas uma lembrança sem saudade. Deu-me um cartão com o numero do seu estúdio, caso eu precisasse fazer algumas fotos.


Por muito tempo quis compreender o que passava na cabeça de Lisa e hoje sei que isso era tudo que eu não deveria compreender. Camille chegou quando eu pensava em não pensar. Beijei-lhe e o processo todo aconteceu da forma mais robótica possível. (Estaria mentindo se dissesse que pensei em Lisa na hora.) Depois vieram as tais mentiras enquanto desfilava nua, falando do sonho de ser modelo e entrar no Big Brother. Chamei uma pizza e na hora de pagar perguntei ao moto-boy onde havia outro parque como o Parcão. Subindo pelo elevador, coloquei a mão no bolso e achei o cartão de Lisa. Elas eram tão lindas juntas. Percebi nesse momento o quão idiota havia sido. Eu cobrava as coisas numa época que não havia o que cobrar. Elas eram tão lindas juntas, que minha imagem atrapalhava até numa foto. Nosso amor jamais existiu e eu sabia disso agora. Não precisava de outro parque, nem de outra cidade. Quando abri a porta do apartamento, Camille fumava um cigarro debruçada na janela, ainda nua, com seus cabelos cacheados desorientados pelo vento, combinando bem com She's So High que tocava bem baixinho...

- Amor, eu sou um bordão ambulante? Um cliente me disse que eu era um...

- Pega esse cartão, vai lá, tire umas fotos. Essa é uma fotografa amiga minha, ela é a melhor...

A pizza estava fria, mas o vinho deu um jeito nisso. Paguei tudo: o vinho, a pizza e o tempo. Paguei para não compreender mais nada. Mas eu posso dizer que nessa história, isso torna-se um final feliz.

Ami Porto