segunda-feira, 19 de abril de 2010

Fugas

Eu me destaco na multidão?
Com cigarro barato envenenando todos os corações ao meu redor?
Você se destaca na multidão?
Com sua beleza avassaladora de propaganda de shampoo?

Me permiti dormir pela tarde, num banco quadrado da rodoviária, aproveitar bem o intervalo ligeiro de minha insônia. Era meu primeiro aniversário longe de casa e a cada quadra via um rosto limpo e conhecido vindo me beijar. Esse rosto sumia. E não construía muito mais que isso. Um café, eu sonhei e logo tomei. Minha avó chegaria logo e a rodoviária estava sendo meu berço. Passavam homens com ternos baratos, garotos sujos entregando panfletos, táxis vermelhos, poluição, prostitutas, mais crianças, índios, indies, consumidores de churrasquinhos maravilhosos, de churrasquinhos de carne verde, de cerveja em latão, de pastel, pastel de rodoviária. Um homem gordo dormia ao meu lado. Escorado em sua sacola, agarrado em outra, sentado noutra. Todos passavam e minha cabeça começava a se cansar. O tédio me disse olá. Tive uma maldita perversão, e então comecei a imaginar cada vida que passava por ali, diante de meus olhos cansados, com terríveis olheiras.

(Aquele senhor de casaco preto estava indo encontrar sua amante, Ticiane. Ele esperara por semanas e finalmente a veria outra vez. Deus, como ele estava feliz. E Tici era linda. Ela queria dinheiro e botas novas, queria comer pizza e tomar champanhe. O senhor do casaco preto não queria uma boa foda, queria apenas algumas mentirinhas, um breve cafuné, um sorriso sincero que só viria acompanhado das botas.)

(O moleque de moicano corria para não perder o ônibus, que já havia partido.)

(A moça peituda do guichê namorava Beto havia três anos. Há dois dias ela não dava resposta sobre o pedido de casamento. Beto a amava muito, ele era motoboy e se fodia todo dia, por muito pouco. A moça peituda do guichê o amava mais ainda, porém o amor não pagava todas as contas. Ela queria se casar! Queria ter coragem e dizer aos quatro cantos o quanto era feliz e não tinha medo. Mas havia medo.)

(Dois garotos sondavam a bolsa duma velha, que poderia ser a minha avó, mas não era.)

(A garota de calça jeans justa estava indo se prostituir em Florianópolis, cursava arquitetura, mas perdeu a bolsa. Conheceu a amiga duma prima, que lhe daria essa grande oportunidade. Deixava para trás um namorado, uma vida de Patrícia, uma magoa pela briga com o pai e uma vontade de ser e não ser.)

E fumavam, todos fumavam. A cena típica de todo centro de cidade, garotas e garotos, velhos e mais velhos, motoboys e taxistas; ejaculados nessa nuvem absurda e natural que é a grande rodoviária da capital.
Toda aquela convulsão era necessária, fazia parte do show absoluto. Nos prédios velhos, ao redor, as mulheres adormeciam. Preparavam-se para a longa noite. Baixava o sol e da ponta da rodoviária dava para ver seu belo reflexo sobre o rio. Isso me trouxe uma longa sensação nostálgica de tempos macios, com cobertor de solteiro para dois e uma casa viva num inverno frio, aquecida com chocolate quente e pipoca temperada com condimento de miojo. Riso vivo, dum amor adormecido. Conversas bobas com amigos hoje imaginários. Os cheiros me confundiam a cada passo, a cada segundo. Cigarro mentolado, suor de trabalhador, espetinho de gato, café, cigarro novamente, mais suor, mais café, perfume barato e halls de cereja. Eu queria o cheiro do cobertor. O gosto do suco em pó barato, que jamais gostei. O som da musica tocando mais uma vez com seu forte refrão. Tudo era sonho, produzido pela insônia que ainda não voltara. Meio acordado, meio zumbi. Meio dormindo, meio zumbi.
Logo o celular tocou e o passado se confundiu. Tocou como a tempos não tocava. O caminhão passou anunciando um circo. O cara do churros empurrava cansado o carrinho. O muambeiro vendia Ray-ban. E o celular não cansava de tocar, sobre meu olhar humano. Droga, todos nós queríamos uma nova morada, numa ruptura do cordão umbilical, mas o sentimento de amor deixado em algum canto, era surreal para quase todos os presentes naquela bruta estação rodoviária.
Lá vinha minha velha senhora, com malas por cima de malas.
Silenciei com os passos que a acompanhavam.
Não veio sozinha, trouxe consigo a razão de minha calma.
Alguém resolveu vir me visitar, numa fuga antiga, em um novo lar.

Ami Porto

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Malditas Condições

(Acordei com o gosto leve de quem jamais sonha com aranhas e afogamento)

Ao meu lado um corpo nu. O lençol jogado ao chão sem dó nenhum. Cabelos longos e escorridos. Tatuagens vivas. Um cigarro pela metade e um suco de laranja a caminho. Seios fartos causaram impacto em meu colchão. Ela deu logo o play e Who Feels Love fez a terceira acordar, dando um magnífico oi. Havia cinto, meias, garrafas. Havia um suco de laranja nu em meu peito. Brindamos o ato, na chuva macia que vinha nos acolher. Fodemos pro tempo, com o tempo, no tempo. Nas condições que eu jamais saberia explicar. (Não queria tentar explicar.) Who Feels Love mais uma vez. E outra e outra. Quando isso acontece, nosso coração para e se engana. Mas a intensidade é tão brutal que me apavorava imaginar os momentos póstumos a tudo aquilo. Os lençóis mais brancos estavam suados, sugados. E bendito seja o anseio claro de viver! Viver nessa conduta imoral pros nossos vizinhos e primos de terceiro grau! Parara a chuva e tudo se acalmou. Pegaram as roupas e partiram. Agora eram as lembranças e o vazio. Sem choro e angustia. Eu, a solidão e a promessa de mais chuva, na televisão alta do apartamento ao lado.

Da janela do meu quarto
da para ver coisas verdes
e se olhar para baixo tem cocô de passarinho, no teto da garagem;
têm duas vizinhas que fingem não ver
que as vejo trocando de roupa às seis da tarde, antes de irem ao cursinho;
ao lado, tem churrasco nas quartas, sextas, domingos e feriados.
Tem meus discos e livros e pensamentos,
mas isso é do lado de dentro
da janela do meu quarto.

Pensei sobre toda essa confusão e ri bobo em frente ao espelho. Ainda saiba sobre as condições do tempo.


##


(Acordei com o gosto amargo de cidades passadas.)

Ao meu lado um corpo lindo, quase transparecendo toda paixão que há na terra. Me implorava um sorriso, mesmo dormindo, mesmo agarrada a um travesseiro branco tão comum . Eu dei o sorriso. Dei o sorriso e talvez muito mais que isso. Nossas almas se encontraram mais uma vez, na areia tão discreta das abominaveis praias daqui. Sabíamos das condições do tempo; apenas do tempo. Uma pausa, para um café. Uma pausa, para verificar se as condições eram de fato, validas. Ouve dias em que tudo valia a pena e novamente esses dias haviam chegado. E a pluralidade, a poligamia, a libertinagem, os devaneios sobre ménage à trois foram pra puta que pariu. A vida poderia escapar, continuar ou desistir. Uma pausa, para o cigarro. Outra pausa, outro cigarro. Ela ali, dormindo apática ao lado, sufocando o travesseiro que horas atrás era tão banal...

Da janela do meu quarto
posso ver a rua,
posso ver rachaduras do tempo,
as infinitas infiltrações.
Posso ver um pouco de sujeira,
ver a areia,
posso ver meus finais de semana passando,
passando quase em vão.

Ela acordou, se espreguiçou, olhou seria e apaixonada. Já não sabíamos sobre as condições do tempo.

Ami Porto