domingo, 11 de dezembro de 2011

Vermelho

Quase não era um problema ter que aturar o frio do fim de tarde aqui, nesta cidade. Quem não gostava muito eram meus pés, pelas extensas quadras que iam e vinham e iam outra vez. Meu cansaço era percebido quando o calcanhar esquentava dentro do All Star. Só quem já usou All Star no inverno gaúcho, sabe do que estou falando. Talvez, se os pés descalços tocassem as pedras da calçada, o frio não seria tão intenso. Lembro-me que, certa feita passei numa farmácia para comprar algodão para forrar as paredes internas do tênis, mais uma brilhante ideia idiota que tive. Era incrível como conseguia resolver os meus problemas numa breve passada na farmácia. O algodão acabou comprimindo meus dedos e formou calos que ficaram cortantes com o frio que aumentava dia após dia; assim como aumenta agora. Isso tudo faz parte do meu pequeno grande drama, que estou disposto a enfrentar. Talvez esta seja minha fuga, talvez seja minha droga que não encontro em nenhuma farmácia, ao contrario do algodão, do citotec, rivotril e afins.
Essa minha fuga possui alguns quilômetros diários de peregrinação, duas horas e treze minutos, para ser exato. Esta minha caminhada me leva todo dia ao encontro dela. A peregrinação por olhos castanhos e umedecidos, que imploram por um novo amor. Do cabelo, também castanho, que facilmente pode ser enrolado ao mais afetuoso abraço, quem sabe deste novo amor. Do nariz pontudo e boca pequena, que se torna um vulcão em fúria quando explode de paixão. E eu bem sei de cada detalhe que descrevo, de cada posição e cada suspiro. Enquanto o céu coloca um tom mais escuro no cinza, que já está pintado desde a metade de maio, a vejo fechar a porta do escritório em que trabalha. Seu sobretudo é negro e seu cabelo liso esbraveja pelo vento que corre em minha direção. Ela sorri com cautela, mas eu ignoro esta cautela e finjo que a paixão é recíproca. Então seguimos nosso caminho.
Eis uma verdade a ser dita neste momento: Há seis meses eu faço este caminho, saio do meu trabalho, passo no trabalho dela e escuto o que ela quer me contar. Dou leves opiniões sobre suas duvidas e, às vezes, lhe conto alguma novidade sobre algo que penso lhe ser relevante. Normalmente, ela diz: “Que bom” ou “Ah, é uma pena...” e seguimos caminhando até a faculdade, o que rende mais uma hora de caminhada.
Sou um diário ambulante.


**

- Amanhã é aniversário da tua mãe, não é? – ela pergunta.
Percebo o quanto estou próximo a minha mãe. Tento lembrar que dia é hoje, mas não consigo, então finjo que me lembro da data:
- Sim, é amanhã.
- Nossa, tu nem se deu conta! Olha a tua cara.
- Claro que eu lembrei, quero dizer, ia lembrar. Bom, você sempre me lembra... – Ela sempre me lembrou. Eu não devia ter falado isso, mas saiu naturalmente.
- Manda um abraço pra ela.
- Porque você não liga pra ela?
- Manda um abraço pra ela.
Naquele momento ousei persistir, mas a persistência nunca foi minha maior virtude. “O que tu tens é pouca voglia”, dizia meu pai com relação às minhas inúmeras desistências de emprego ou à tamanha lerdeza para perceber as enormes possibilidades de crescimento que me cercavam e eu nada fazia. Eu me sentia livre das compilações de minha geração sedentária, só que cada vez mais me tornava parte dela. Pensei tudo isso quando vi seu olhar cair, simbolizando que eu estava invadindo demais o seu espaço. Tínhamos um acordo. E eu não deveria perguntar “Porque você não liga pra ela” eu deveria dizer “Ok, eu mando um abraço.”
- Eu não consigo ver vantagem neste frio todo.
- Tem o vinho. – eu disse.
- E o pinhão.
- Eu não gosto de...
- Sim, sim, lembrei agora. Mas mesmo assim, não da para passar o inverno todo tomando vinho. Esse frio todo só serve pra nos deixar melancólicos em casa.
- Eu gosto do frio – (E das bochechas vermelhas dela ao toque do vinho).
- Dá pra acreditar que no Rio tava vinte e cinco graus hoje à tarde?
- Verdade? – Há alguns dias ela não parava de falar no Rio de Janeiro. Falava sobre as praias, sobre o clima, falava sobre Vinícius e a boemia, sobre Chico e a poesia, sobre o modo de viver dos cariocas. Uma vez falamos em ir morar lá. Largar tudo e se aventurar na cidade maravilhosa. Esta é mais uma falha de minha geração. A vontade de ir, que na maioria dos casos resulta em não ir.
Imaginei-me então como um pesquisador: Eu estava nas ruas, nas portas das universidades. Perguntava aos jovens de dezoito a vinte e três anos suas ambições pessoais. Eis a maioria das respostas obtidas em minha pesquisa imaginária:
- Quero me formar e sair daqui.
- Quero sair daqui pra me formar.
- Quero sair logo deste lugar.
Isso resultou numa significativa margem de 93% de relutância em permanecer no seu berço. A margem de erro era de 2%, para mais ou para menos.
Eu não precisava de pesquisa. Estas respostas eram tão obvias quanto à resposta para o crescimento rápido da minha barriga e dos meus amigos: Cerveja.
- Tu sabia que existe um beco em Copacabana que se chama Beco das Garrafas? Antigamente, havia umas boates que foram o berço da Bossa Nova. Parece que até a Elis cantou lá. Diz que os moradores dos prédios ao redor jogavam garrafas quando os bêbados ficavam até muito tarde, falando alto e fazendo fuzarca. Ai o nome pegou.
A noite quis surgir. Ela sempre vinha quando estávamos no ponto mais alto da cidade. Muitas vezes, eu subia sozinho até lá. Eu e a minha sensação de paz nos lugares altos. Houve outro tempo em que parávamos ali, eu e ela, e dizíamos coisas belas, “O céu está vermelho para nós”. Ouve um tempo em que calávamos a fúria dos carros que passavam por ali apenas com um olhar mortal. Dava para ver o lago, a floresta, a poluição, as mansões e as favelas. Tínhamos o céu todo para nós e as luzes brilhavam abaixo dele. Elas significavam vidas, significavam histórias e agora significavam a beleza como um todo, ali no topo da cidade.
- Por que você tem falado tanto no Rio de Janeiro ultimamente? – Perguntei outra vez sem pensar, consequência dos pensamentos ligeiros sobre a vista que não me cansava.
Ela parou a caminhada. Estava imaginando que logo eu perguntaria isso.
- Porque vou morar lá. – disse com a voz tremula, porém serena.
- Por que você vai morar lá... – Repeti como um papagaio, pausadamente, mal digerindo a frase – Quando?
- Amanhã.
Ela percebeu meu semblante.
- E tu não ia me contar isso?
- Estou contando agora. Eu conheci um cara. Eu to apaixonada.
- Você está apaixonada. – Eu sorri. E Por quê? Eu não sei, acho que o nervosismo acabou com qualquer raciocínio, com minha interpretação existente até o momento. Eu não sei, apenas sorri. Pensei numa maneira de impedi-la, algum ato infantil. Qualquer coisa para conter o choro e aquela sensação da garganta apertando cada vez mais, que poderia chegar a qualquer momento. É pai, desta vez não era eu quem tinha desistido. Lembrei do nosso acordo. – Nós temos um acordo...
- Nós não temos quase nada do que já tivemos. Esse acordo é uma infantilidade nossa.
Eis outra verdade que já posso revelar: o tal acordo. Concordamos em nos ver diariamente após o fim do namoro. Isso parecia ridículo, mas era a tentativa de nos manter mais fortes perante o catastrófico fim do relacionamento. Eu me sentia culpado e ela parecia fazer questão de me ver assim. Pra ser sincero, nunca soube se ela realmente me culpara e nunca saberei se ela firmou este acordo para me ver mal, ou simplesmente para me ver. Assim, eu me consumia de amor cada vez mais, enquanto ela ficava indiferente. Todos os dias, desde então, caminhávamos juntos até a universidade. Nada de beijo, nada de abraço. Éramos dois estranhos conversando sobre o trabalho, sobre a aula e sobre o tempo. De certa forma eu seguia suas regras, que não eram brutais a seu ver, mas me dilaceravam. Certo dia, esse sentimento se estabilizou. Eu consegui conter meu amor. Deixei-o guardado pra mais tarde. A sobremesa da minha vida. Logo eu a teria de volta, enquanto isso deixava que meus pés congelassem ao longo do caminho. Passaram-se seis meses, contudo o que eram seis meses para um amor que já existia há quatro anos? Junto com essa verdade que acabei de revelar, posso dizer também que neste momento, no ponto mais alto da cidade, todo esse amor foi golfado boca a fora.
- E eu? Hãn? O que é que eu faço com todo esse amor que eu tenho guardado?
- Eu não sei. Eu não posso retribuir isso...
- Eu te amo, porra!
Ela se virou para que eu não percebesse a lágrima que viria. Impediu esta lágrima correr com o polegar direito, voltou-se para mim e disse:
- Olha pro céu. Tá vendo?
- O quê? – O homem da minha geração continua abalável com o fim de um relacionamento. (Essa frase foi dita para não precisar explicar o quanto meu rosto estava molhado).
- O céu já não está mais vermelho para nós, Tomas.
Nada mais poderia ser dito ou feito sobre isso. Ela disse meu nome. O que revela quem eu sou. O que revela minha última verdade.
Escute: Eu matei a vida de Carolina. A vida que sairia de sua vida. A vida que sairia de minha vida. Ela disse que sim, mas a idéia foi minha. Com uma breve passada na farmácia. Com a idéia de que éramos tão jovens. Com o medo de sermos tão jovens. Nunca mais foi dito que o céu ficara vermelho para nós. E ela não sabia nada sobre vermelho. Sobre o quão rápido o algodão de um lençol absorve o rubro. Ela não sabia disso por minha culpa. Por estar inconsciente enquanto o vermelho amor se transformava em rubro trágico.
- Eu vou estar aqui, guria...
- Não, não esteja! Tu também não quer ficar aqui. Simplesmente... Vá. – E esta é a constatação final que eu faço sobre a minha geração: Elas dormem menina e acordam mulher. É assim... Amadurecem da noite para o dia. E o máximo que fazem é pedir desculpas por não poder pedir desculpas.
Enfim ela estava curada, e eu, logo também estaria. Curados da dor, do amor, da angústia, do ressentimento profundo. Prontos para enfrentar tudo outra vez, neste vai e vem eterno.

**

Quando os anos passaram, eu achei Carolina no Facebook. Ela trabalha numa revista que fala sobre música e continua casada ou casou novamente. Ainda possui um belo sorriso e ainda mora no Rio de Janeiro, para ser exato, na Praia Vermelha.


A.P

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Diálogo da véspera da véspera

Ele estava sozinho na sacada do apartamento do primo de um amigo, quando ela chegou:

- Divagações natalinas ai, guri?
- Na verdade eu tava me deixando contaminar com esse ar diferente do final de ano.
- Pois é, tu gosta de todo esse clima?
- Não sei, na verdade eu tento não ligar. Mas às vezes parece que os melhores natais foram aqueles que passaram há muito tempo, sabe? Teve um ano que eu ganhei um fita dos Mamonas e aquilo foi demais. Outra vez eu andei na caçamba duma saveiro, junto com um Papai Noel mascarado, daqueles que dão medo, com o sorriso psicótico estampado no plástico vagabundo.
- Sei sim, eu sempre achei o Papai Noel um cara meio escroto, aqueles então... Nossa, eu adorava aquele tempo em que nós nem participávamos do amigo secreto e eu e minhas primas brindávamos com guaraná. Droga, esse ano eu ainda nem comprei o presente do meu amigo secreto...
- Quem que tu pegou?
- Há, a amiga da minha prima, que eu nunca vi na vida. Só sei que ela ta vindo de São Paulo e é modelo... Acho que eu vou dar um livro de auto-ajuda pra ela.
- Que merda, eu ficaria muito puto se alguém me desse um livro de auto-ajuda no natal...
- Mas essa é a minha intenção! Nos amigos secretos da escola, eu sempre dava presentes legais e ganhava, sei lá, caderno de capa mole ou caixa de Amor Carioca.
- Amor Carioca é meio salgado, né?... Mas eu sempre dava caixa de Amor Carioca.
- Serio? Tu merecia ganhar um livro de auto-ajuda...

Porto Alegre ventava. Parece que o frio queria ficar para a próxima noite, ficar para a ceia. Por enquanto sossegava na sacada do apartamento do Bom Fim. Ela seguia naquele papo:

- Tu vai passar o natal aqui?
- Não, amanhã cedo eu vou pra estrada, quero ver se consigo chegar em Floripa antes do anoitecer...
- Mesmo? Me leva junto?
- Claro! Essa é a minha intenção: conhecer o desconhecido. Ai pelas sete, ta bom pra ti?

(Ela sorriu nervosa, talvez pela sincera verdade obtida na resposta. Talvez o beijo viesse a seguir, mas resolveram aproveitar mais o tal ar que os rodeava.)

- Essa vida na estrada não te cansa?
- O teu trabalho no escritório não te cansa?
- Eu não trabalho num escritório!
- Bom, se tu trabalhasse teria o mesmo cansaço. Eu gosto disso, sabe, de viver desta forma. Lugares novos, pessoas novas. Ouve um tempo em que eu queria ter aquela família tradicional das propagandas antigas da Coca-Cola, mas esse tempo já foi.
- Esta é a minha família – Ela disse.
- Nessa família, eu queria ser o filho. Não o pai, saca? O filho acorda de manhã e brinca com os presentes, assiste os especiais de fim de ano e sua única preocupação é o que vai ter para comer. Já o pai, esse toma uísque e fuma um cigarro escondido da mãe, que esta no banheiro mandando mensagem pro amante... Nossa isso é terrível! Isso é terrível? Eu não sei, realmente não sei...
- Esta é a minha família – Ela disse sem pensar – Tu devia escrever sobre isso. As vezes eu escrevo e isso me faz bem...
- Talvez um dia eu escreva sim, mas acho que é cedo pra isso. Quem sabe eu escreva sobre essa noite, sobre a nossa conversa.
- Não, não. – Ela riu. (Gostou da idéia) – Deve ter coisas mais interessantes do que uma conversa idiota sobre o natal e seus clichês viciosos.
- Então eu vou escrever sobre um Papai Noel bêbado que acabou com o natal das crianças, lá no Moinhos de Vento, só por que os pais deles queriam que o bom velhinho chegasse a meia noite em ponto.
- Claro! Isso seria genial.
- Ele era o Papai Noel do Praia de Belas, adorava uísque, e porra, era natal! Todos bebem sem culpa no natal, porque o bom velhinho não poderia terminar com o Johnnie antes da meia noite, hum? Droga! O maior problema é que amanhã de manhã eu vou ter esquecido tudo isso... Eu sempre esqueço.
- Não. Desta vez eu posso te lembrar, pela manhã.

Provavelmente transaram no quarto do primo do amigo. Só isso. É claro que ela não seguiu junto, mas daqui a cinco ou seis anos a lembrança desta noite seria mais valiosa e o tempo ficaria mais salgado que Amor Carioca.


Ami P.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Nota de compreensão

Por muito tempo quis compreender o que passava na cabeça de Lisa. Sua revolta com o mundo culminava em tapas e repúdios desnecessários para um namoro tão belo, como o nosso. Sua filosofia Live Fast, Die Young até me seduzia, mas não me tomava por completo. Sendo assim, me via obrigado a desbravar o glossário bipolar Lisano, e sempre que chegava as páginas finais, terminávamos. Aí, eu bebia, batia, fumava, trepava e Lisa ainda estava lá, nas minhas cabeças adolescentes de vinte e quatro anos. Daqui a pouco ela golpeava a porta de minha casa com força, proferindo o oi mais filho da puta que já ouvi, beijando-me ligeira, nua, do seu modo, de acordo com seu cronograma. Depois fumava aliviada com tesão jovem ainda recendendo, mesclando-se ao cheiro mentolado do cigarro. Escrevia em meus braços, frases de canções, normalmente dos Beatles, normalmente de George. E então recomeçávamos até o suor acabar com as frases, para serem escritas outra vez.)


Era quase natal e começava a sentir a melancolia do fim de ano chegando. Eu tentava fugir disso. Tentava me esquivar, disfarçar, mas quando menos percebia, acendia um cigarro e o olhar profundo dominava tudo. Lavei o rosto e sai. A caminhada rotineira da nova vida me fazia respirar melhor. O Parcão era minha terapia, qualquer sensação ruim era expelida ali, em meio a seus maravilhosos habitantes, tanto os hippies engravatados, quanto os filósofos Tetra Pak. Andava em direção ao centro do parque onde havia um lago com pedalinhos e tartarugas, bancos feitos com troncos e um trapiche comprido, perfeito para pescar, com uma placa de proibido pescar. Normalmente eu dava umas três voltas no lago deixando o stress dispersar. Foi ai que lhe encontrei, no começo da primeira curva. Meu olhar parou no cabelo loiro que já havia sido puxado pela mão, que agora largara o cigarro no chão. Estava longe de ser a melhor sensação do mundo, mas instintivamente caminhei em sua direção. Linda. Com jaqueta de couro. Batom vermelho. O cheiro ao meu alcance, apesar da longa distância. É incrível com existem pessoas que inexplicavelmente nos hipnotizam ao respirar. Lisa estava com uma garota tão linda quanto ela e logo imaginei seis pernas entrelaçadas. A garota era ruiva e sorria gentil a cada palavra que Lisa dizia. Nenhuma conseguia me ver e meu coração explodia de alegria, tesão e nostalgia.


Por muito tempo quis compreender o que passava na cabeça de Lisa e nessa noite eu só queria saber o que passava na minha, buscando companhia num site de acompanhantes. Não que eu considerasse isso algo depressivo ou vergonhoso, pelo contrário, seria bom inventar uma história e ouvir outra minuciosamente arquitetada, arrecadando falsos pontos para o próprio ego, mas a verdade era que eu buscava uma forma imediata de esquecer a tarde no Parcão. Esquecer das línguas passeando entre batons e dentes, saboreando a saliva que eu queria saborear. Eram esplêndidas, as duas! Particularmente o sorriso de Lisa enquanto beijava. Aquele sorriso do canto da boca que eu via ao abrir os olhos no meio do beijo, acompanhado da mão leve no cabelo, costas e bunda. Lisa me viu e apresentou Mika. Era tão estranho e lindo tudo aquilo. Agora notava a barriga levemente inchada pelos três meses da gestação. Deus, como eu queria fazer parte daquela alegria. Lisa me contou brevemente sua vida desde nosso último encontro, sobre seu relacionamento com Mika e a inseminação, sobre as fotos novas que estava tirando. Dizia isso com Mika ao seu lado, ainda sorrindo. Aquilo me incomodava, ela sorria porque não tinha ciúme e não tinha ciúme porque eu não era mais importante pra Lisa, apenas uma lembrança sem saudade. Deu-me um cartão com o numero do seu estúdio, caso eu precisasse fazer algumas fotos.


Por muito tempo quis compreender o que passava na cabeça de Lisa e hoje sei que isso era tudo que eu não deveria compreender. Camille chegou quando eu pensava em não pensar. Beijei-lhe e o processo todo aconteceu da forma mais robótica possível. (Estaria mentindo se dissesse que pensei em Lisa na hora.) Depois vieram as tais mentiras enquanto desfilava nua, falando do sonho de ser modelo e entrar no Big Brother. Chamei uma pizza e na hora de pagar perguntei ao moto-boy onde havia outro parque como o Parcão. Subindo pelo elevador, coloquei a mão no bolso e achei o cartão de Lisa. Elas eram tão lindas juntas. Percebi nesse momento o quão idiota havia sido. Eu cobrava as coisas numa época que não havia o que cobrar. Elas eram tão lindas juntas, que minha imagem atrapalhava até numa foto. Nosso amor jamais existiu e eu sabia disso agora. Não precisava de outro parque, nem de outra cidade. Quando abri a porta do apartamento, Camille fumava um cigarro debruçada na janela, ainda nua, com seus cabelos cacheados desorientados pelo vento, combinando bem com She's So High que tocava bem baixinho...

- Amor, eu sou um bordão ambulante? Um cliente me disse que eu era um...

- Pega esse cartão, vai lá, tire umas fotos. Essa é uma fotografa amiga minha, ela é a melhor...

A pizza estava fria, mas o vinho deu um jeito nisso. Paguei tudo: o vinho, a pizza e o tempo. Paguei para não compreender mais nada. Mas eu posso dizer que nessa história, isso torna-se um final feliz.

Ami Porto

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Vitória Vs. Quem não quer ser


Agora estava a um passo da maior descoberta de todos os tempos, pelo menos pra mim, mas ainda nem sabia disso. Bom, talvez se soubesse estaria mais excitado. Subia as escadas de mármore da cabana luxuosa que a tempos observara de fora. Era lindo e assustador. Os vidros escuros e os moveis também. As paredes em vermelho vivo e um piano longo, que supus jamais ser tocado. Era uma família pequena, a mãe fora médica, o pai antropólogo. O pouco que sabia-se deles até então, era que não podiam ter filhos e moravam sozinhos, com a companhia da mesma empregada desde que construíram a casa, uma moça timida que quase nunca saia, segundo a vizinha que terminava de ser interrogada. Homens tiravam fotos e conversavam sem dar muito valor a cena rotineira. O chefe com seu olhar frio e o cigarro pela metade no canto da boca, disse para mim subir até o quarto do terceiro andar.


***

Havia sido o frio mais intenso, o de 96, ao menos pra mim, que trabalhava num escritório, caminhando cerca de trinta minutos para chegar lá. Nas ruas mais movimentadas, passavam carros e motos, pessoas e cães vira-latas todos conexos no frio inaceitável daquela época. Era impossível não ligar. O calor humano morria ali. Olhos com remela, abaixo da touca de lã, acima da manta cobrindo a ponta vermelha de um nariz que fungava segurando os ranhos, as vezes era tudo que podíamos ver no rosto dos obrigados a caminhar. A paisagem me reconfortava, imaginando uma Europa distante e gloriosa que não havia sido apresentado. A geada típica, acompanhada das folhas mortas, dos quintais varridos pela solidão dos homens sem mate e dos cães sem latido. Cães que tentavam enxergar algum movimento diferente dentro e fora de casa, pelo buraco de suas gélidas casinhas de madeira bem abaixo das chaminés que aqueciam lares, junto da água fervente, que aquecia o corpo quente que me via lá fora passar. Era somente eu na rua, nesta rua. Por vezes passava uma mulher com um cigarro na boca. Uma garota incrivelmente linda, ainda que entrouxada de roupa, com os cabelos cacheados por falta do banho que existia nas manhãs de verão.
Eis que surge a cabana. Uma pirâmide imponente que não temia ao frio, como as casas ao redor. As outras, encolhiam-se. Esta erguia-se como uma fogueira de quase dez metros. Vermelho nas paredes. Vidros negros, grades negras. Mármore imitando tabuleiro de xadrez, desde o portão até a porta de entrada, os vidros devidamente abertos, na perfeita simetria de toda aquela grande obra. Um vidro se fechou. Exatamente quando eu passei. E assim permaneceu pelo resto dos dias que cruzei por ali. Cada manhã e cada noite. Sempre fechado. Sempre claro, significando uma luz sempre acesa, significando alguém sempre ali, significando uma solidão, uma exclusão, um esquecimento, talvez um pretexto para indicar a presença de vida. Ou era apenas uma luz?

Vamos para o dia em que pego o livro de funcionários do escritório em que trabalhava e vejo uma garota negra, de olhar sereno, linda, mesmo sendo numa foto 3x4. Seu nome é Vitória de Soño, sua idade, a mesma que a minha. Sem endereço, telefone ou qualquer outro complemento. Uma semana na empresa. Tudo tão vago quanto o olhar na foto apagada que pensei em roubar. (Roubei.) Uma foto que passei meses olhando, pensando. Queria encontrá-la. Não para tentar me casar, mas para descobrir o grande mistério que eu criara, já que o pessoal dali falava pouco, sem interesse algum, sem o sentimento de que pairava algo confuso no olhar da bela moça. “Eu não sei, não sei! Já falei que ela não falava com ninguém, parecia que tinha medo até de atender o telefone, quando pedimos para ela trazer a documentação, ela nunca mais apareceu.” Vitória ficara no fundo do bolso da carteira. Até agora.


***

Burkina Faso foi o pais escolhido pelo Dr. e Dra. de Soño para passar sua lua de mel. Desenvolver um serviço social num dos países mais pobres do planeta encantava tanto o antropólogo, quanto a médica. Manter um diário de bordo que possivelmente virasse um livro, tendendo ser comentado por alguém do conselho nacional ou da mídia, ousando tornar-se um pretensioso documentário, quiçá um longa com algum romance politizado, era o mais oculto dos sonhos idealizado pelo casal. Claro que seria merecida a recompensa de todo o esforço em prevenção ao HIV, o esforço para combater a mortalidade infantil e o auxilio básico a população, pensava a doutora que era mais ambiciosa que seu marido. Fixaram-se então na capital Uagadugu e exploraram os bairros pobres dando todo o suporte necessário. Seus trabalhos tinham grande notoriedade e passando alguns meses, surgiu Zola Marvena Meeca, mais uma jovem, que implorava comida para suas seis filhas. Os doutores olharam para suas pequenas crianças. Em meio a toda miséria, elas davam risada para matar a fome, brincavam com a terra que logo seria seu alimento. Em meio a toda aquela desgraça, tinham fé num Deus que havia ido comprar cigarros e jamais voltara. Um olhar mágico saia dos olhos da mais velha de todas. A doutora perguntou com seu excelente francês, abrindo um sorriso receptivo, o nome daquela que destacava uma beleza quase extinta naquele lugar. Chamava-se Lubaya, tinha nove anos e sorria tímida.
Zola tornou-se a mais dedicada auxiliar que qualquer médico poderia ter. Implorou um perdão desnecessário, quando contou sobre seu sétimo filho. Um menino, dessa vez. Os doutores mantinham-se agora no povoado mais pobre da cidade, junto com Zola e as crianças. Sempre havia alguém para consultar e alguém para necropsiar. A morte era a televisão das crianças de Burkina Faso. O horário eleitoral gratuito, o futebol das mulheres e a novela dos homens. Zola cresceu em meio a tudo aquilo. Caminhava pelas beiradas. Equilibrava-se nas pernas secas, nos recordistas 23 anos de vida. A doutora seguia sorrindo diferente para a encantadora Lubaya, que respondia ao carinho, até a noite em que estourou a bolsa de Zola. Era complicado explicar, mas o parto tornou-se de risco, mesmo com todos os cuidados, tinham que escolher entre ela e o bebê. Ela. O bebê. Nenhum dos dois se salvou. Nenhum dos quatro no quarto. Nem Zola. Nem a criança, nem os doutores. Tudo acabara ali. As proporções foram além do imaginável. O sangue de Zola manchava a carreira fantástica daquele casal. Manchava o espírito. Manchava a adormecida Uagadugu, na amarga e finita noite do casal de Soño, naquele distante pais africano.


***

Quando abri a porta do quarto, dei um sorriso de alivio. Finalmente eu matava uma curiosidade infantil. Ele estava impecável, mas não era tão belo quanto imaginava nas frias manhãs que passava, a onze anos atrás. Ao dar alguns passos avistei uma folha, propositadamente colocada no chão, ao centro do quarto, de forma que a primeira palavra, mesmo não sendo a primeira escrita no papel, que meus olhos conseguiram ler, foi: Vitória. Minhas mãos se atiraram até a folha, enquanto alguém perguntava-me se havia algum corpo no quarto. Respondi que não e voltei toda a atenção para o meu santo graal. Letras lindas, escritas em trechos, numa colagem xerocada, com partes sublinhadas por um marca texto verde florescente. Comecei a ler:

“Conheci a garota mais linda que os meus olhos poderiam ver, nesta doença infernal chamado África. Ela tem nove anos e é filha mais velha de uma mulher que vem sendo muito útil nas nossas pesquisas sobre partos naturais em situações extremas... Robert se encantou com a pequena Lubaya tanto quanto eu, e se tudo der certo pediremos apoio ao nosso governo para sua adoção... Lubaya é tão doce, que tive medo de sua reação sobre o parto. Zola já estava contaminada com o vírus, por isso apenas lhe poupamos tanta dor, e o governo nos concedeu sua guarda de maneira tão simples que não há mais necessidade de ficarmos aqui... As crianças acharão seus caminhos, levaremos elas pra Gana, onde o auxilio a órfãos tende a ser melhor... A menina esta quieta demais, mas sei que faz parte de sua adaptação em sua nova vida... Na nova casa projetamos o melhor quarto para ela... Queria tanto ser chamada de mãe... Queria tanto publicar sobre nós, sobre Burkina, Zola, sobre tudo, mas Robert e eu sabemos o quanto isso iria nos prejudicar... Repudio-me toda manha quando penso que tenho que mentir aos vizinhos que minha filha é apenas a diarista... Se pudesse voltar no tempo queria estar com minha filha naquela cidade terrível de onde ela veio, quem sabe assim eu veria o sorriso mais lindo do mundo... Temo que ela queira voltar, temo que ela esteja suprindo uma raiva enorme por mim e Robert... Pagamos a faculdade mais cara de medicina para ela, e não consigo ver felicidade vindo em minha direção... Queria tanto que ela conhecesse alguém, que finalmente tivesse uma alegria sincera... Quero netos, antes que esses remédios me matem... Robert esta me deixando louca... Hoje acordei e ela finalmente me abraçou e disse “obrigado, mãe” com um português legitimo, no começo parecia uma despedida, mas agora sei que ela me ama...”

Quando virei a folha, estava escrito em francês, com caneta azul, a frase que terminava toda esta história. Assim como a foto roubada, anos atrás, peguei o papel e coloquei-o no bolso, a maior e provavelmente única prova do envenenamento do casal de Soño. Jamais a conheceria, mas tive a certeza que limpara todas as poucas evidências de sua longa estada na vida do casal. Obrigado, linda Lubaya, por permitir que eu soubesse ao fim, sua existência. Mesmo você jamais sabendo da minha, obrigado.
“Achou alguma coisa?” “Nada...” “A empregada sumiu, faz mais de meses, segundo os vizinhos. Acharam o corpo daquele ladrãozinho de merda a três quadras daqui. Bom, se não for ele, agora vai ser. Ei! Tá me ouvindo porra! Bora lá da uma olhada no bandidinho...”
Palavras podem salvar você?
Podem me salvar?
Pelo menos senti o prazer de ser o único a conhecer a verdadeira história.

“Après beaucoup de temps je ressens le Vitória être Lubaya”
(Depois de tempos eu sinto a Vitória de ser Lubaya)


***

Numa tarde quente e típica, no Aeroporto Accra Kotoka, em Gana, Lubaya respira seu verdadeiro ar, começando uma nova busca, numa nova vida, encarando o fato que acabara de vez vencendo, por não querer ser a falsa Vitória.

Ami Porto

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Parábola do rei na barriga

Ele não quer apenas enfiar as mãos dentro daquele vestido, ele quer todos os lábios dela para si. Quer desfrutar do gosto da beleza e prendê-la sem mais porquê. E sugar sua vida, torná-la escrava de todos os seus desejos e pecados. Quer a vingança por outra e outra. Sentir-se Deus numa forma mais rude e o Diabo na sutileza.
Então vai. Seu perfume assassino exala o vigor do olhar. Espera a bela vítima calar com seus olhos verde água, justamente agora que os olhares se atraem pela longa caminhada até sua direção. A boca dela, que tem batom vermelho sangue, que contrai levemente o labio inferior, passando a lingua devagar sem perceber, é vitima do nervosismo que olhos escondem.
Reparem na musica de Edit Piaf soando ao fundo, como se os anjos acabassem de ser manipulados pelos demônios da luxúria. E já falei do vestido branco? Sim, branquíssimo, de tecido leve. E as mãos com aliança ao redor, pediam com toda fé para serem algemadas, imploravam a todos os santos para não transparecer a respiração ofegante ao pé do ouvido de sua parceira. Ele prosseguia em passos lentos, com vontade de desfrutar da virilidade obsessiva que possuía, e só. Sem paixão ou compaixão. Ela olhava armando aquele maldito sorriso encantado enquanto aumentavam a fumaça no salão e alguns seguiam rodopiando.
Ela parada e ele se aproximando demais. Demais.

Não apenas enfiou as mãos dentro daquele vestido como teve todos os lábios e o gosto da beleza, que saia dela. Ela o agarrava firme ignorando sangue e suor que corria pelos buracos das costas feito com puro tesão. Quando acabaram, o fogo ainda queimava e ele teve certeza do êxito da alma que acabara de roubar. Sorriu nu, em frente ao espelho, antes de se limpar.

Oito anos e uma barriga mais tarde chegou a conclusão da real falia do seu brilhante plano na juventude, quando abriu a porta de sua casa e leu o bilhete que estava em cima da mesa, escrito às pressas:

“Volto tarde, peguei o cartão”.


Ami Porto

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Invisible Monsters

Por Ami Porto
Ilustração de PC Siqueira


Quando a beleza dela ou dela é superior as outras presenças, podemos nos considerar de certa forma invisível?
Quando tudo que dizem, é ignorado pelo simples fato de terem peitos, bundas e bocas enormes, elas deveriam agradecer?
Deveriam lamentar?

E você ai, queria a garota da propaganda do creme dental?
Sim, você queria a garota da propaganda do creme dental!
Para contar a todos, para honrar seus colhões, para sentir-se dono das bocas e pernas e bundas e peitos e braços, abraços, saliva e sexo.
Sim, nós queremos a todo instante apreciar a beleza que passa diante dos nossos olhos, e porque não provar da beleza que passa diante dos nossos olhos.

Mas Shannon McFarland desistiu desta vida, numa inversão da beleza a um caminho obscuro, guiada por Brandy Alexander, uma transexual viciada em Valium e outros benzodiazepínicos, elas imbarcam numa viagem interminavel em busca de vingança, descobrimento e redenção.
Com uma violenta critica a realidade materialista e consumista do mundo de hoje, criado pelo furioso Chuck Palahniuk, de Clube da Luta, fica exposto nesta obra as inúmeras formas de monstros, tanto físico quanto psíquico, tanto visível quanto invisível, que podemos nos deparar ao longo da estrada.

Monstros Invisíveis, de Chuck Palahniuk, 256 páginas, Editora ROCCO.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Revirem suas gavetas em busca dos papeis amarelados

Comecei a pensar em muitas vidas quando organizava os papeis empoeirados do quarto que anos me abrigara. Tossia feito louco a cada página velha que virava. Maldita alergia. Maldita nostalgia. Bondosa nostalgia, que me fez ver fotos de quem não vejo mais, de quem não quer mais me ver e de quem não quero mais ver. Todos estavam mortos. Pai, mãe, irmão, tio e avô. Eu era o estranho no meu ninho. E mais tosse, talvez por ter parado de fumar. Mas agora eu queria um cigarro, porém me compus. As paredes azuis estavam desbotadas, infiltradas e com teias de aranha. Minha aracnofobia havia desaparecido, mas agora sentia seu resgate eminente, com alguns sentimentos pendentes que humanamente me consumiam. Não havia mais meu cheiro. Mudou. Eu seguia as pistas da antiga casa. Fui até o quintal. Nada de hortelã na horta. O flamboiã estava morto. O parquinho das crianças com limo. Na cozinha o piso de madeira estalava ainda no mesmo lugar. Lembrei das inúmeras vezes que prometi entrar no porão para consertar. Logo o corretor estaria comigo, e o telefone tocou. "Mais uma hora, seu Newton", seu Newton era o tal corretor e eu precisava dele mais do que qualquer pessoa no mundo agora. Não precisava de Jesus, nem de uma terapeuta. Eu precisava de seu Newton, pra me desvincular eternamente daquela casa que tanta vida me proporcionou. No carpete do quarto algumas manchas que lembrei ser de vinho. Os móveis feitos sob medida, por mim e por Joca. Eu tinha saudades de Joca, e de outros que se perderam pelo mundo a fora. Há, Deus do céu, a gaveta falsa! Que horas escondia cigarro, horas guardava camisinha, baseado, dinheiro, horas guardava poemas e musicas para ela ou pra ela. Coloquei a mão lá no fundo, tentando não pensar nas aranhas. Tinha um papel. Puxei. Assoprei. Tossi. Agora os papeis que presumi serem importantes estavam guardados na pasta de couro que carregava e deixava para abrir ao fim desta história. Seu Newton iria querer tomar um trago para comemorar a venda da casa. Fora arrematada por uns 150 mil. Eu queria tomar um café, sozinho, lendo aqueles papeis velhos que eram minhas relíquias. Droga, aquele monte de papel amarelado valia mais que esses 150 mil! Fui ao banheiro do quarto. Diante do espelho quase não conseguia me ver. Estava velho. Eu e o espelho. Desbotado pela vida, rugas e cabelo branco, manchado e trincado, evoluído, porém cansado, mal lavado, porém reflexível. Seu Newton abriu o portão eletrônico já conversando com os compradores. Eles falavam sobre futebol, porque a essa altura o negocio já estava fechado. Na semana seguinte aquelas paredes viriam ao chão com toda a sua idade. Foda-se, pensei, eu não posso conservar essas paredes. Só posso conservar minhas histórias, meus amores, meus sabores de guerra de bexigas e banho de mangueira. Meus gre-nais sofridos, meus goles de cerveja gelada, meu suor e saliva de sexo. E dos perfumes de nicotina. Dos quecas embriagados, consumidos pela adolescência infinita, que agora eu não tinha. Onde foram todos os gostos e cheiros e amores da época mais preciosa de minha vida? Estão conservados em algum lugar, dentro de mim. Ninguém tira este patrimônio espiritual de mim. "Tu deve ter vivido bons momentos nessa casa, não é Seu Ami?" dizia o engravatado comprador da casa. "Nada de mais, eu mal parava em casa..." Foda-se o engravatado! Não tinha que transparecer meus sentimentos, ele não queria realmente saber, eu não queria realmente falar.
Dei uma velha desculpa pro trago comemorativo, enquanto o dinheiro ia para minha conta e fui ao café mais alto da cidade. Era uma bela vista. Abri minha pasta e comecei a folhar os papeis. "Você tem Marlboro ai?" "Temos sim senhor, maço ou box?" "Não, me traga apenas um café."
A vida passou. É isso... A vida passou como as madrugadas que eu passava escrevendo. Como as madrugadas em que me deliciava nos tecs da máquina de escrever e depois no computador e às vezes nos garranchos dos bloquinhos. E logo o sol dava oi. E a vida assim, passou. Caralho, como eu tava velho. Me sentia velho, mas minhas costas carregavam somente 53 anos. E minha mente? Todos nos culpamos pelo que fizemos ou deixamos de fazer, não é mesmo? Tá bom, eu sou teu marido, tu é minha esposa, aquele ali no canto esperando para ler tudo isso, é meu neto. E meu filho? Ele esta dando a volta na quadra esperando minha nora sair do salão de cabeleireiro. Ele vai comentar sobre seu lindo corte de cabelo, afinal, ela saiu do salão. Ela ficara puta, porque apenas fez as unhas. Tá bom, essa historia seria amável num simbolismo familiar, mas eu era um homem sozinho. Escolhi essa vida. ESCOLHI ESSA VIDA. Depois de três casamentos e unhas mal feitas, escolhi essa vida. Mas o mais importante agora eram os papeis. E Mr. Tambourine Man soava perfeito na jukebox do café. Veio a pré-escola, com cola colorida e glíter, a folha amarela e uma nota nove, dado pela minha primeira professora. A quinta serie, com excursões para puta que o pariu, que era o melhor lugar do mundo. Sétima e oitava, com bilhetes assim:

"Mãe, gostaríamos de informar que seu filho, Ami, receberá a ultima advertência antes de ser convidado a deixar de fazer parte de nossa escola, pelo fato de difamar o professor Dorival Neves, de física. Tais ofensas são indispensáveis de redigir neste bilhete. Espero sua resposta mesmo sabendo que tens trabalho em tempo integral, como já afirmaste por telefone. Diretora Italiana de Plates, E. E. E. F. José Lebre"

Cartas, mais bilhetes, notas, desenhos, mangás recortados, pôsteres recortados. Poemas e fotos. E fotos recortadas. "Mais café, por favor." Tudo sobre pó, sobre o valor do pó. Com os dedos pretos, logo corri para o mais amarelado de todos; aquele do fundo da gaveta falsa. Era um poema que havia escrito no dia anterior de minha partida para outra vida. Eu não lembrava que havia escrito aquilo, e tinha um significado enorme para mim. Para minha geração banal que não abrangia tudo isso que me consumia por demais.

"Textos de Hemingway,
Pinturas de Frida Kahlo,
Quadrinhos de Crumb, com textos de Harver Peaker,
Cobranças de faltas de Roberto Carlos,
E o velho Dylan rolando as pedras!
Takes de Kubrick, Almodóvar e Scorsese,
Dribles do Mané pelo fogão,
Polar, pra nos orgulhar do que é nosso,
Dando sentido a papo cabeça para os alienados
e papo idiota para os undergrounds,
Nessa salada mista, que é tão minha,
e poderia ser tão sua."

Eram somente palavras que me deram o cheiro da casa, a cor do flamboiã, o som das crianças no parquinho, o azul turquesa recém pintado. A cara de Joca, cansado depois de fazer os moveis, o sorriso alegre da garota mais bela da cidade, nos primórdios da paixão. Sai do café. Sem final triste. Sem final feliz. Sem ponto final. Apenas correndo as próximas vinte quatro horas esperando os papeis amarelar e serem lembrados da felicidade maior que queremos ter, e já tivemos

(sem ponto final)

Ami Porto