domingo, 11 de dezembro de 2011

Vermelho

Quase não era um problema ter que aturar o frio do fim de tarde aqui, nesta cidade. Quem não gostava muito eram meus pés, pelas extensas quadras que iam e vinham e iam outra vez. Meu cansaço era percebido quando o calcanhar esquentava dentro do All Star. Só quem já usou All Star no inverno gaúcho, sabe do que estou falando. Talvez, se os pés descalços tocassem as pedras da calçada, o frio não seria tão intenso. Lembro-me que, certa feita passei numa farmácia para comprar algodão para forrar as paredes internas do tênis, mais uma brilhante ideia idiota que tive. Era incrível como conseguia resolver os meus problemas numa breve passada na farmácia. O algodão acabou comprimindo meus dedos e formou calos que ficaram cortantes com o frio que aumentava dia após dia; assim como aumenta agora. Isso tudo faz parte do meu pequeno grande drama, que estou disposto a enfrentar. Talvez esta seja minha fuga, talvez seja minha droga que não encontro em nenhuma farmácia, ao contrario do algodão, do citotec, rivotril e afins.
Essa minha fuga possui alguns quilômetros diários de peregrinação, duas horas e treze minutos, para ser exato. Esta minha caminhada me leva todo dia ao encontro dela. A peregrinação por olhos castanhos e umedecidos, que imploram por um novo amor. Do cabelo, também castanho, que facilmente pode ser enrolado ao mais afetuoso abraço, quem sabe deste novo amor. Do nariz pontudo e boca pequena, que se torna um vulcão em fúria quando explode de paixão. E eu bem sei de cada detalhe que descrevo, de cada posição e cada suspiro. Enquanto o céu coloca um tom mais escuro no cinza, que já está pintado desde a metade de maio, a vejo fechar a porta do escritório em que trabalha. Seu sobretudo é negro e seu cabelo liso esbraveja pelo vento que corre em minha direção. Ela sorri com cautela, mas eu ignoro esta cautela e finjo que a paixão é recíproca. Então seguimos nosso caminho.
Eis uma verdade a ser dita neste momento: Há seis meses eu faço este caminho, saio do meu trabalho, passo no trabalho dela e escuto o que ela quer me contar. Dou leves opiniões sobre suas duvidas e, às vezes, lhe conto alguma novidade sobre algo que penso lhe ser relevante. Normalmente, ela diz: “Que bom” ou “Ah, é uma pena...” e seguimos caminhando até a faculdade, o que rende mais uma hora de caminhada.
Sou um diário ambulante.


**

- Amanhã é aniversário da tua mãe, não é? – ela pergunta.
Percebo o quanto estou próximo a minha mãe. Tento lembrar que dia é hoje, mas não consigo, então finjo que me lembro da data:
- Sim, é amanhã.
- Nossa, tu nem se deu conta! Olha a tua cara.
- Claro que eu lembrei, quero dizer, ia lembrar. Bom, você sempre me lembra... – Ela sempre me lembrou. Eu não devia ter falado isso, mas saiu naturalmente.
- Manda um abraço pra ela.
- Porque você não liga pra ela?
- Manda um abraço pra ela.
Naquele momento ousei persistir, mas a persistência nunca foi minha maior virtude. “O que tu tens é pouca voglia”, dizia meu pai com relação às minhas inúmeras desistências de emprego ou à tamanha lerdeza para perceber as enormes possibilidades de crescimento que me cercavam e eu nada fazia. Eu me sentia livre das compilações de minha geração sedentária, só que cada vez mais me tornava parte dela. Pensei tudo isso quando vi seu olhar cair, simbolizando que eu estava invadindo demais o seu espaço. Tínhamos um acordo. E eu não deveria perguntar “Porque você não liga pra ela” eu deveria dizer “Ok, eu mando um abraço.”
- Eu não consigo ver vantagem neste frio todo.
- Tem o vinho. – eu disse.
- E o pinhão.
- Eu não gosto de...
- Sim, sim, lembrei agora. Mas mesmo assim, não da para passar o inverno todo tomando vinho. Esse frio todo só serve pra nos deixar melancólicos em casa.
- Eu gosto do frio – (E das bochechas vermelhas dela ao toque do vinho).
- Dá pra acreditar que no Rio tava vinte e cinco graus hoje à tarde?
- Verdade? – Há alguns dias ela não parava de falar no Rio de Janeiro. Falava sobre as praias, sobre o clima, falava sobre Vinícius e a boemia, sobre Chico e a poesia, sobre o modo de viver dos cariocas. Uma vez falamos em ir morar lá. Largar tudo e se aventurar na cidade maravilhosa. Esta é mais uma falha de minha geração. A vontade de ir, que na maioria dos casos resulta em não ir.
Imaginei-me então como um pesquisador: Eu estava nas ruas, nas portas das universidades. Perguntava aos jovens de dezoito a vinte e três anos suas ambições pessoais. Eis a maioria das respostas obtidas em minha pesquisa imaginária:
- Quero me formar e sair daqui.
- Quero sair daqui pra me formar.
- Quero sair logo deste lugar.
Isso resultou numa significativa margem de 93% de relutância em permanecer no seu berço. A margem de erro era de 2%, para mais ou para menos.
Eu não precisava de pesquisa. Estas respostas eram tão obvias quanto à resposta para o crescimento rápido da minha barriga e dos meus amigos: Cerveja.
- Tu sabia que existe um beco em Copacabana que se chama Beco das Garrafas? Antigamente, havia umas boates que foram o berço da Bossa Nova. Parece que até a Elis cantou lá. Diz que os moradores dos prédios ao redor jogavam garrafas quando os bêbados ficavam até muito tarde, falando alto e fazendo fuzarca. Ai o nome pegou.
A noite quis surgir. Ela sempre vinha quando estávamos no ponto mais alto da cidade. Muitas vezes, eu subia sozinho até lá. Eu e a minha sensação de paz nos lugares altos. Houve outro tempo em que parávamos ali, eu e ela, e dizíamos coisas belas, “O céu está vermelho para nós”. Ouve um tempo em que calávamos a fúria dos carros que passavam por ali apenas com um olhar mortal. Dava para ver o lago, a floresta, a poluição, as mansões e as favelas. Tínhamos o céu todo para nós e as luzes brilhavam abaixo dele. Elas significavam vidas, significavam histórias e agora significavam a beleza como um todo, ali no topo da cidade.
- Por que você tem falado tanto no Rio de Janeiro ultimamente? – Perguntei outra vez sem pensar, consequência dos pensamentos ligeiros sobre a vista que não me cansava.
Ela parou a caminhada. Estava imaginando que logo eu perguntaria isso.
- Porque vou morar lá. – disse com a voz tremula, porém serena.
- Por que você vai morar lá... – Repeti como um papagaio, pausadamente, mal digerindo a frase – Quando?
- Amanhã.
Ela percebeu meu semblante.
- E tu não ia me contar isso?
- Estou contando agora. Eu conheci um cara. Eu to apaixonada.
- Você está apaixonada. – Eu sorri. E Por quê? Eu não sei, acho que o nervosismo acabou com qualquer raciocínio, com minha interpretação existente até o momento. Eu não sei, apenas sorri. Pensei numa maneira de impedi-la, algum ato infantil. Qualquer coisa para conter o choro e aquela sensação da garganta apertando cada vez mais, que poderia chegar a qualquer momento. É pai, desta vez não era eu quem tinha desistido. Lembrei do nosso acordo. – Nós temos um acordo...
- Nós não temos quase nada do que já tivemos. Esse acordo é uma infantilidade nossa.
Eis outra verdade que já posso revelar: o tal acordo. Concordamos em nos ver diariamente após o fim do namoro. Isso parecia ridículo, mas era a tentativa de nos manter mais fortes perante o catastrófico fim do relacionamento. Eu me sentia culpado e ela parecia fazer questão de me ver assim. Pra ser sincero, nunca soube se ela realmente me culpara e nunca saberei se ela firmou este acordo para me ver mal, ou simplesmente para me ver. Assim, eu me consumia de amor cada vez mais, enquanto ela ficava indiferente. Todos os dias, desde então, caminhávamos juntos até a universidade. Nada de beijo, nada de abraço. Éramos dois estranhos conversando sobre o trabalho, sobre a aula e sobre o tempo. De certa forma eu seguia suas regras, que não eram brutais a seu ver, mas me dilaceravam. Certo dia, esse sentimento se estabilizou. Eu consegui conter meu amor. Deixei-o guardado pra mais tarde. A sobremesa da minha vida. Logo eu a teria de volta, enquanto isso deixava que meus pés congelassem ao longo do caminho. Passaram-se seis meses, contudo o que eram seis meses para um amor que já existia há quatro anos? Junto com essa verdade que acabei de revelar, posso dizer também que neste momento, no ponto mais alto da cidade, todo esse amor foi golfado boca a fora.
- E eu? Hãn? O que é que eu faço com todo esse amor que eu tenho guardado?
- Eu não sei. Eu não posso retribuir isso...
- Eu te amo, porra!
Ela se virou para que eu não percebesse a lágrima que viria. Impediu esta lágrima correr com o polegar direito, voltou-se para mim e disse:
- Olha pro céu. Tá vendo?
- O quê? – O homem da minha geração continua abalável com o fim de um relacionamento. (Essa frase foi dita para não precisar explicar o quanto meu rosto estava molhado).
- O céu já não está mais vermelho para nós, Tomas.
Nada mais poderia ser dito ou feito sobre isso. Ela disse meu nome. O que revela quem eu sou. O que revela minha última verdade.
Escute: Eu matei a vida de Carolina. A vida que sairia de sua vida. A vida que sairia de minha vida. Ela disse que sim, mas a idéia foi minha. Com uma breve passada na farmácia. Com a idéia de que éramos tão jovens. Com o medo de sermos tão jovens. Nunca mais foi dito que o céu ficara vermelho para nós. E ela não sabia nada sobre vermelho. Sobre o quão rápido o algodão de um lençol absorve o rubro. Ela não sabia disso por minha culpa. Por estar inconsciente enquanto o vermelho amor se transformava em rubro trágico.
- Eu vou estar aqui, guria...
- Não, não esteja! Tu também não quer ficar aqui. Simplesmente... Vá. – E esta é a constatação final que eu faço sobre a minha geração: Elas dormem menina e acordam mulher. É assim... Amadurecem da noite para o dia. E o máximo que fazem é pedir desculpas por não poder pedir desculpas.
Enfim ela estava curada, e eu, logo também estaria. Curados da dor, do amor, da angústia, do ressentimento profundo. Prontos para enfrentar tudo outra vez, neste vai e vem eterno.

**

Quando os anos passaram, eu achei Carolina no Facebook. Ela trabalha numa revista que fala sobre música e continua casada ou casou novamente. Ainda possui um belo sorriso e ainda mora no Rio de Janeiro, para ser exato, na Praia Vermelha.


A.P

Um comentário:

  1. Com ou sem pedigree, penso que devemos insistir e investir mais tempo destilando e divagando sobre "All Stares" e sobre amores com bochechas rosadas e sobre o frio... É uma forma de olhar pra dentro, de transcrever-se e sobretudo degustar o sabor de pequenos prazeres efêmeros, como este, o de ser livre para escrever sobre o que bem quiser. Palavras de candidata a colega blogueira (com blog empoeirado e precisando de mais tempo e inspiração). Abraço.

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